Fevereiro de 2018, Londres, congresso anual do Patient Safety Movement Foundation. O então secretário de saúde, Jeremy Hunt, apresenta alguns dados relacionados à Segurança do Paciente no Reino Unido.
Durante o painel de especialistas, abre-se para as perguntas da platéia (e aqui cabe um adendo: o congresso do PSMF é aberto para todos participarem, profissionais e não profissionais de saúde, incluindo pacientes e familiares). Uma mulher se levanta com o microfone em mãos e questiona alguns dos dados apresentados por Hunt. Relata que seu filho foi vítima do sistema de saúde britânico.
O secretário rebate dizendo que ainda há muitos pontos a serem melhorados, com toda certeza, incluindo o acesso ao sistema e a qualidade de atendimento. Aproveita para ressaltar mais alguns outros pontos positivos para contrabalancear.
A mulher, ainda em pé, diz com uma objetividade dilacerante:
“O senhor não entendeu. Eu acredito que meu filho foi vítima do sistema de saúde por ser negro.”
Silêncio em um salão com mais de 500 pessoas.
Todos prenderam a respiração.
Aquela frase foi um soco no estômago.
Saí com o questionamento se as denominadas “minorias” têm o seu cuidado em saúde afetado por preconceitos implícitos.
Um paciente não deveria esperar receber um padrão mais baixo de cuidado por conta de sua raça, sexo ou qualquer outra característica irrelevante. Entretanto, associações implícitas (processos inconscientes, incontroláveis ou irracionais) podem influenciar nossos julgamentos resultando em viés.
Isso se manifesta através da linguagem não-verbal, como frequência do contato visual e proximidade física, até a qualidade das informações (inferir que um paciente negro possui menos capacidade de compreensão e decidir não explicar o procedimento ou deixar de prescrever um medicamento que seja mais trabalhoso de tomar e com eficácia melhor).
Um artigo de revisão de 2017 (1) aborda este tema e traz à luz o problema enfrentado pelos ditos “grupos vulneráveis”: negros, pobres, imigrantes, aqueles com baixa alfabetização em saúde (se você não sabe o que é isso, clique aqui) e doenças mentais, minorias sexuais, mulheres, deficientes e obesos.
Preconceito Racial e Sócio-Econômico
- Em bairros de baixa renda, pacientes com diabetes têm 10 vezes mais chances de sofrer amputação de membros do que aqueles em áreas mais ricas;
- Nos EUA, 60% das mulheres de baixa renda são rastreadas para câncer de mama em comparação com 80% das mulheres de alta renda. E mesmo corrigindo as diferenças sócio-econômicas, as mulheres brancas têm taxas de rastreio mais altas do que as mulheres afro-americanas e latinas;
- Sabemos que 25% afro-americanos têm pressão arterial elevada em comparação com 10% dos americanos brancos, ainda assim, os pacientes negros são 10% menos propensos a serem rastreados para o colesterol elevado do que os americanos brancos. O resultado são taxas mais altas de insuficiência cardíaca e derrames em afro-americanos;
- Fora da área da saúde, um estudo de RH mostrou diferenças na taxa de agendamento de entrevistas para emprego quando osmesmos currículos são enviados com os nomes Emily e Greg x Lakisha e Jamal.
Gênero
Vou escrever um artigo a parte mas só para constar: em um estudo de 2009, mulheres de meia-idade com sintomas de doença arterial coronária eram duas vezes mais propensas a receber um diagnóstico de doença mental do que homens da mesma faixa etária.
Lesões Cerebrais
Clínicos tratam pior os pacientes com lesões cerebrais se eles são, de alguma forma, vistos como “responsáveis” por sua lesão, como por exemplo, envolvimento com drogas ou dirigir embriagado.
Exemplo da vida real: Uma sexta-feira, estava em uma pizzaria de esquina, em Pinheiros, quando vi um rapaz perder a consciência e bater a cabeça no chão.
Saí correndo para prestar atendimento. Ele permaneceu inconsciente até o SAMU chegar, 40 minutos depois. Corte na cabeça, sangrando, olho direito roxo; mas mantinha um bom padrão respiratório.
O SAMU veio sem pressa, passeando pelo quarteirão, mesmo com meia dúzia de pessoas acenando na esquina. O motorista e a enfermeira descem, olham para o rapaz e dizem: “O que foi? Bebeu demais e desmaiou?”. Expliquei que não, que havia presenciado a queda e que o amigo dele negou o consumo de qualquer substância, incluindo álcool.
Caras feias. O motorista olha a cabeça e o olho roxo. “Isso aqui é bêbado que brigou na rua!!”. Aquilo me tirou do sério. Respondi que não era o caso e que, mesmo que fosse, ele precisava urgentemente de socorro. Ainda assim, mais 20 minutos para colocar na ambulância e levá-lo.
Obesidade
Este preconceito é complicado porque é uma mistura de preconceito implícito e explícito.
As atitudes explícitas são conscientes e refletem as opiniões ou crenças de uma pessoa sobre um grupo.
As atitudes implícitas são automáticas e muitas vezes ocorrem fora da consciência e em contraste com as crenças explícitas.
Atitudes negativas explícitas sobre as pessoas com obesidade são mais socialmente aceitáveis do que o racismo explícito. Exemplo: é aceitável em muitas culturas ocidentais que as pessoas com obesidade sejam a fonte de humor depreciativo e possam, assim, ser aberta e inquestionavelmente, retratadas como preguiçosas, glutonas e indisciplinadas.
Existem evidências empíricas substanciais de que pessoas com obesidade provoquem sentimentos negativos como nojo, raiva, culpa e antipatia em outros.
Apesar da alta prevalência (aproximadamente um terço da população adulta dos EUA), os indivíduos com obesidade são freqüentemente alvo de preconceito, comentários depreciativos e outros maus-tratos em diversos contextos, incluindo assistência médica.
E isso impacta, obviamente, na experiência do paciente porque o preconceito é revelado na linguagem verbal e não-verbal; mas também na qualidade da assistência e da relação médico-paciente.
Pacientes obesos e diabéticos são mais propensos a receberem apenas orientações de mudanças de estilo de vida do que os não obesos, retardando o tratamento medicamentoso e aumentando o número de complicações.
Outro estudo demonstrou que clínicos passam menos tempo orientando pacientes obesos porque os vêem como preguiçosos e pouco aderentes ao tratamento. E sabemos que a falta de informações em relação a sua saúde é um preditor independente de mortalidade!
E o que fazer com essas informações?
Se você acha que não é o seu caso, experimente fazer um Teste de Associação Implícita. Está em português e no site da Harvard:
https://implicit.harvard.edu/implicit/brazil/takeatest.html
Mesmo refletindo, estudando e me policiando muito em relação às minhas ações, ainda assim, possuo preconceito implícito em relação à raça. Recebi o resultado com a mesma surpresa de um autor que gosto muito, Malcolm Gladwell, que por sinal é afro-descendente.
Somos humanos, todos nós carregamos preconceitos implícitos (e explícitos em alguns casos, infelizmente) e isso reflete na nossa assistência.
Creio que o mais perigoso é negar que todos nós temos preconceitos e não trabalhar com isso para tentar, de alguma forma, diminuir as disparidades na assistência.
Referências
1- FitzGerald C, Hurst S. Implicit bias in healthcare professionals: a systematic review. BMC Med Ethics. 2017 Mar 1;18(1):19.
2- T.Michael Vallis, BarbaraCurrieMN. Healthcare Professional Bias Against the Obese: How Do We Know If We Have a Problem? Canadian Journal of Diabetes. Volume 31, Issue 4, 2007, Pages 365–370
3- Phelan, S M et al. “Impact of weight bias and stigma on quality of care and outcomes for patients with obesity” Obesity reviews : an official journal of the International Association for the Study of Obesity vol. 16,4 (2015): 319–26.
4- Bertrand M, Mullainathan S. Are Emily and Greg more employable than lakisha and Jamal? a field experiment on labor market discrimination. Am Econ Rev. 2004;94:991–1013
5- https://www.forbes.com/sites/robertpearl/2015/03/05/healthcare-black-latino-poor/#76b42bc37869
6- https://implicit.harvard.edu/implicit/brazil/selectatest.jsp